sexta-feira, 20 de março de 2009

FIZERAM A GENTE ACREDITAR ...


“Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer, só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos. Não contaram pra nós que amor não é acionado, nem chega com hora marcada.

Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade. Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida merece carregar nas costas a responsabilidade de completar o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo. Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável.

Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada 'dois em um': duas pessoas pensando igual, agindo igual, que era isso que funcionava. Não nos contaram que isso tem nome: anulação... Que só sendo indivíduos com personalidade própria é que poderemos ter uma relação saudável.

Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório e que desejos fora de hora devem ser reprimidos.

Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis, e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto. Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto.

Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz, a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Não nos contaram que estas fórmulas dão erradas, frustram as pessoas, são alienantes, e que podemos tentar alternativas.

Ah, também não contaram que ninguém vai contar isso tudo pra gente. Cada um vai ter que descobrir sozinho.

E aí, quando você estiver muito apaixonado por você mesmo, vai poder ser muito feliz e se apaixonar por alguém'


(John Lennon)

quarta-feira, 18 de março de 2009

CLODOVIL: MORREU E VIROU SANTO!


Dizem que depois que as pessoas morrem, viram ‘santas’. Raramente se vê alguém falando mal de um defunto. Quando eu morrer não desejo virar ‘santo’, para quem nunca me viu assim. Pelo contrário, por não ter sido considerado por estas pessoas como ‘santo’ - e por tal razão não termos tido aproximidade -, espero sinceramente que elas compareçam ao meu velório, e se possível, que teçam comentários maliciosos a meu respeito e depois confiram se realmente ficaram livres de mim. Até porque se não fizerem isto na vida, foi porque eu fiz primeiro. Existem alguns velórios que não perco por nada nessa vida! A não ser que eu tenha ido primeiro!

Enfim, algumas pessoas marcam sua passagem na terra pela singularidade de personalidade. Diferente da maioria das pessoas, morreu ontem o estilista, apresentador de televisão e deputado federal Clodovil Hernandes, conhecido pelo seu posicionamento sincero em relação à sua orientação sexual e sobre tudo o que opina, uma vez que não se preocupa em ser politicamente correto – algo tão em voga – quando queria expor seu ponto de vista.

Talvez o maior ícone de um extrato social – o homossexual – nem por isso defendia os direitos de seus semelhantes. Dizia não crer em Deus e sim numa força maior, talvez a da natureza. Causou polêmica ao expor juízos de valores sobre negros, judeus e prostituição. No Congresso foi visto como uma figura transgênica. Por estas razões ou é visto como alguém de personalidade que por isto irá fazer falta no cenário brasileiro, ou como um ser repugnante, que se acha melhor do que as outras pessoas. Considero que ele foi um artista diferente da maioria. Era inteligente, sarcástico, por isso, polêmico.

Como artista, Clodovil era assim. Ele fará falta pela ausência atual de pessoas públicas, que se tornaram polêmicas – como também foi Dercy Gonçalves – por dizer algumas verdades, que precisam (ou não) ser ditas, mesmo que seja para o entretenimento geral da nação.

Não gosto muito de pessoas comuns demais. No geral, posso até não gostar do posicionamento que se alguém decide tomar, não concordar com suas vontades, mas ter personalidade própria e saber se posicionar diante das circunstâncias da vida é uma qualidade imprescindível. Gosto de pessoas inteligentes, singulares. Merecem o respeito e a admiração. Se irão virar 'santas' depois de mortas, isso depende da opinião alheia!

sábado, 14 de março de 2009

SOMOS TODOS CRISTÃOS


Volta e meia surge um novo grupo no cenário musical nacional com algum rit marcante, nem que seja numa única frase. Nesse final de semana resolvi procurar na internet por uma música em destaque na televisão. Entre as canções divulgadas na publicidade, uma me chamou a atenção, dizia: “foi sem você que pude entender....”. Pesquisando a respeito, descobri que a canção ‘Sem você’ é de uma banda que completa vinte anos, intitulada ‘Rosa de Saron’, que caminha pelo rock e apresenta músicas interessantes.

A novidade é que esta banda é publicamente católica. Entre as várias músicas do último trabalho, em referência aos 20 anos da banda, com uma gravação ao vivo e acústico, apenas a canção ‘Linda Menina’ faz referência direta ao credo católico em relação à fé em Maria, as outras são de cunho pessoal ou de reflexões sentimentais e também algumas que expressam a crença cristã de forma genérica. Lembrei-me de ‘Pimentas do Reino’, porque assim como ‘Rosa de Saron’, no ano passado, também ultrapassou a margem religiosa e conquistar notoriedade secular, principalmente com o sucesso ‘Pensando em você’. Àquela época, surgiu toda uma polêmica por ser a banda formada por integrantes que se denominavam evangélicos, que faziam músicas não somente para evangélicos.

Parece-me que isto têm se tornado uma tendência. Cantores renomados entre seus rebanhos cristãos, como Aline Barros e Pe. Fabio de Melo têm dito a oportunidade de alcançar outros públicos além dos componentes de suas comunidades religiosas, principalmente através da mídia televisiva. Neste contexto, surgem posicionamentos intrigantes. De uma ala há os tradicionalistas que vêem com maus olhos esta mistura entre sacro e secular, entre o religioso e o mundano, entre o eclesiástico e o midiático. Amedrontam-se com a possibilidade de seu rebanho ouvir outros ritmos diferentes do que estão acostumados. Por sua vez, os liberais fundamentalistas crêem que finalmente caminhamos para a unificação dos segmentos cristãos, quase numa filosofia utópica emprenhada num discurso lúdico e inclusivo.

Nesse meio todo me lembrei de um texto de autoria de Reinaldo Azevedo, colunista de uma grande revista de circulação nacional, intitulado ‘Somos todos cristãos’. Fazendo uma relação do cristianismo com a filosofia e a como se deu o fortalecimento desta religião num contexto mundial, passando principalmente sobre a importância do papel feminista para este fortalecimento, Azevedo escreveu:

“Cristo é e seguirá sendo a principal referência do que reconhecemos no Ocidente como a nossa "cultura" porque somos todos cristãos. Se não formos pela fé, seremos pela história; se não formos porque devotos da Revelação, seremos porque caudatários de uma revolução. Cristãos, ateus, judeus, islâmicos, budistas, materialistas, espíritas, agnósticos, comungamos de um patrimônio que entendemos como um ideal de civilização e de justiça”.

Culturalmente, na mente ocidental, se não se devota à Cristo, segue-se seus princípios civilizadores e de justiça, que incluem o respeito à vida, ao amor próprio e ao próximo, o direito de escolha e de diversidade, o senso de justiça, de moral, de ética, de ponderável, de aceitabilidade. Concordo com o articulista porque se trata de um patrimônio, que, de tão enraizado pelos séculos, vê-se natural nos comportamentos humanos, realmente independentemente de credos religiosos.

Nesse sentido, e retornando ao assunto da postagem que é a banda Rosa de Saron, compreendo como salutar que pessoas cristãs, independentemente de qual seguimento – católico ou protestante – consigam demonstrar através das artes, seja musical ou de qualquer outra forma, estes princípios cristãos, aliado a fé e circunstâncias humanas, que não escolhem credos, como nossos sentimentos e relacionamentos amorosos. Quanto ao conteúdo das músicas, particularmente, gostei. É uma excepcionalidade entre as novidades musicais dos últimos anos. Músicas bem elaboradas e aprazíveis de ouvir. Recomendo.

Abaixo um videomontagem a partir da letra da música 'As Dores do Silêncio'. Arrepiante!


Para quem quiser ler o texto de Azevedo, clique no link:

domingo, 8 de março de 2009

CADA MACACO NO SEU GALHO


Gerou polêmica esta semana a notícia que o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, decidiu excomungar a mãe e médicos que realizaram o procedimento de interromper a gravidez, na ultima quarta-feira dia 04, de uma menina de apenas 9 anos de idade, que fora estuprada pelo padrasto de 23 anos de idade, e engravidou de gêmeos. De acordo com o religioso, para a Igreja Católica, o aborto é um "crime mais grave que o estupro".

O presidente Lula, cidadão brasileiro, cristão católico, que não conseguiu ficar calado diante da polêmica, na sexta-feira afirmou que "... não é possível permitir que uma menina estuprada pelo padrasto tenha esse filho. Até porque a menina que corria risco de morte. Nesse aspecto, a medicina está mais correta que a Igreja" foi rebatido pelo arcebispo que o orientou procurar apoio em assessoria teológica antes de se pronunciar a respeito de assuntos religiosos.

O assunto levantou a discussão sobre o papel da Igreja em relação ao Estado, que no caso promoveu uma medida para a sobrevivência da própria gestante, sendo a excepcionalidade da criminalidade do aborto percebida. Juridicamente, e amparado pelo Estado, que se fez presente com a atuação do Ministério Público por ser a gestante civilmente incapaz para seus atos, os médicos fizeram o que lhes fora ensinado e mesmo o que lhes é exigido pelas organizações de classes.

O dilema gira, sobretudo, em relação à eficácia de tal determinação da Igreja Católica. Ser excomungado nos dias de hoje pelas instituições religiosas já não traz arrepios. Não existem mais fogueiras em praças públicas para dar cabo à ‘pecadores’. Os médicos não se importaram pela decisão papal aplicada pelo arcebispo. Parece-me que lhes soou ser mais cristão a dignidade da vida humana da VÍTIMA, do que as arbitrariedades impostas pela Igreja Católica. Ao contrário, soa ridiculamente tal decisão eclesiástica quando afirma que realizar o aborto para evitar a morte VÍTIMA gestante é um crime pior que o estupro. Mesmo que de forma imediata não se queira induzir, parece-me que para os religiosos, em tela, ser vítima é pior do que ser estuprador. É um endosso a prática do crime de estupro, porque afinal, as próximas vítimas de violência sexual, que forem católicas, terão que gestar algo que lhes faz mal unicamente por ser fruto de um ato brutíssimo, desumano, cruel, macabro.

O que se percebe na realidade é que o fundamentalismo, o tradicionalismo e os costumes religiosos estão ainda em vigor quanto da aplicabilidade de leis estanques, arcaicas, pelas instituições religiosas. A justiça fria, o conservadorismo hipócrita, faz com que posicionamentos como estes nos façam analisar por quais trilhas caminham as religiões e o que é ser, individualmente, religioso em nossos dias.

A aplicação da leitura morta da lei é pior do que a não aplicabilidade de lei alguma. Fere o Estado Democrático de Direito em que vivemos, onde o Estado que deve manter-se laico, vê-se criticado por um segmento religioso. A teocracia já não faz mais parte da historia político-governamental de nossa nação há séculos. Erra a Igreja ao tentar ditar normas ao Estado e ao tentar inibir que o Presidente da República, que fazendo uso do seu direito de exposição de opinião, posicione-se a favor do ato médico realizado. Valente que é este arcebispo deveria agora, seguindo sua linha de raciocínio, excomungar também o presidente Lula, por apologia ao aborto. Aliás, a prática da intimidação por autoridades religiosas também já caiu em desuso completamente, até mesmo por questões morais. Particularmente, creio que o arcebispo não tem tamanha coragem, até porque opinião de um presidente não é tratada a de uma VÍTIMA de estupro qualquer.

Todos os atos religiosos fundamentalistas, xiitas, sejam eles cristãos – e neste aspecto não pode esquecer-se dos protestantes – ou de outras manifestações de crenças transcendentais, devem ser vistos com cautela.

No caso, o fundamentalismo cristão é interpretação paupérrima dos ensinamentos do líder de tal religião. Jesus, o Deus homem, estabeleceu princípios entre seus seguidores que demonstram o respeito ao próximo, ao amor à vida, à dignidade humana, à inclusão e à diversidade de idéias, vontades e posicionamentos. Cristo não ensinou ser taxativo na aplicação da lei. Pelo contrário, o desenvolvimento hermenêutico dos ordenamentos jurídicos é facilmente captado na leitura de suas passagens e percebido em suas atividades. O que falar da mulher adultera, da parábola do bom samaritano, do trabalho no dia de sábado e tantas outras passagens?

Sugiro aos fundamentalistas religiosos, que se preocupam em cuidar da vida alheia quando na verdade deveria se preocupar em pregar a graça do amor de/e à Cristo e ao próximo, que procurem seguir o ensinamento cantado por Caetano Veloso: “... cada macaco no seu galho, eu não me canso de cantar...”, já que seguir aos ensinamentos de Cristo é complicado.

Ser religioso, ser Igreja, no século XXI, precisa ser diferente do século III, quando a Igreja Católica era o Estado. E ser Estado hoje é ser garantidor dos direitos elementares à dignidade humana, e entre estes, o direito à vida, o qual, no caso, foi protegido, uma vez que a única vida que realmente se salvaria era a da vítima, pois caso fosse prosseguida a gestação, tanto VÍTIMA como fetos não sobreviveriam.

Cada macaco no seu galho... a Igreja não deve esquecer de se lembrar!

sexta-feira, 6 de março de 2009

MINISTÉRIO COM SURDOS: POR QUE PAREI?

Texto escrito na madrugada do domingo 22 de fevereiro de 2009. Depois de escrevê-lo, achei por bem não publicá-lo. Hoje, revendo-o decidi pela publicação. Antes de ser um desabafo pessoal serve para a análise de nossas decisões humanas em relação às experiências religiosas em comunidades de fé, de como estas experiências nos marcam, nos moldam, nos ensinam e nos formam. Fiz algumas alterações, quase todas em aspectos meramente lingüísticos. Espero que não ofenda a ninguém e que você, leitor, goste, e pense na sua experiência religiosa antes de exercer juízo de valor.


Quem conhece a história completa da minha vida sabe que me dediquei dos 11 aos 23 anos, de forma ininterrupta, ao Ministério com Surdos que liderava, na minha igreja. Sabe que empenhei constantemente a uma proposta religiosa que visava, sobretudo, a evangelização e a promoção social dos surdos de Valadares, e que para tanto, acabei tornando-me, por forças das circunstâncias, um representante dos anseios deste estrato social.

Ao sair de Valadares ano passado não pensava que meus planos não obteriam êxito. A possibilidade de que caso nada desse certo e eu ter que voltar para minha cidade e para meu contexto, até aquele momento não fora considerada. Acontece que foi isso que aconteceu. Voltei. Entretanto, não atuo mais neste Ministério.

Isso tem causado um incômodo em algumas pessoas, que acaba por me incomodar também. Ser ‘cobrado’ a continuar fazendo o que sempre me viram fazer é uma das coisas mais desagradáveis que vivencio. Brinco dizendo que ‘completei a carreira e perdi a fé’. Mas essa brincadeira tem um fundo de verdade.Então, para os que queriam saber por que parei minhas atividades eclesiásticas com surdos, destaco entre outras, quatro razões:




1. PORQUE NUNCA PEDIRAM PARA EU COMEÇAR:

Exatamente! Os surdos nunca me pediram para eu começar, para eu evangelizá-los, para ‘salvá-los da perdição’, para incluí-los na sociedade. Eu que quis e fui atrás. Por anos, ás vezes futilmente preocupado em aspectos quantitativos, perguntava-me o que podia ser feito para que o Ministério expandisse e alcançasse mais surdos, porém a resposta só encontrei no final de 2007, quando uma surda sinalizou para mim essa razão: "NÓS SURDOS NUNCA PEDIR VOCE FAZER NADA POR NÓS. VOCÊ FEZ PORQUE VOCÊ QUERER".

Aquilo doeu muito no momento. Creio que ela nem se lembre mais que me disse isto, pois continuamos amigos. Enfim. Mas com o tempo aquelas palavras fizeram razão para mim. E quando isto aconteceu, foi como se a ficha tivesse caído. Realmente, muitas vezes me martirizei tanto por algo que não me foi pedido. E isso é tão comum em ministérios de outras igrejas. Vejo pessoas tão ‘ativistas’, batalhadoras e que não vêem resultados e que ficam frustradas. Apesar de ser uma experiência pessoal, para estes ‘companheiros de missão’ deixo essa indagação: os surdos realmente te pediram alguma coisa?

Aprendi somente agora que não devo fazer nada além de minhas forças. Hoje, e depois de compreender isto, confesso que não tenho mais forças para continuar. Então, já que não me foi pedido, e que já não tenho mais forças para continuar, resolvi parar.


2. PORQUE JÁ FIZ O PUDE NAQUELE CONTEXTO:

Poderia elencar aqui diversas razões pelas quais eu já tinha a compreensão comigo mesmo de que meu tempo já havia esgotado. O certo é que decorridos 12 anos, no mesmo lugar, todos os domingos pela manhã, de noite, EBD, associação, etc, enfim, aquilo já tinha se tornado uma rotina, que se desenvolveu, sobretudo, de forma pesada e impensada. Tal como um relacionamento que se desgasta com o tempo assim se tornou minha relação com aqueles surdos. Já tinha ensinado o que poderia ter ensinado. Já tinha aprendido o que podia ter aprendido. Já tinha me dedicado, dentro das minhas possibilidades, o máximo que pude. Já tinha o resultado realístico que não se alteraria para melhor mais. O estado de estagnação era preponderante. Mesmo que eu não tivesse me mudado de cidade, essa situação teria que chegar ao fim.

Pode ser que a vida com suas reviravoltas, faça-me um dia retornar, mas isto só ocorrerá se for em outra igreja, em outro contexto e se principalmente todas as razões elencadas aqui – e outras mais - deixarem de existir, de fato. Se não for assim, realmente parei por aqui.


3. PORQUE NÃO ME VI VALORIZADO:

Sei que este aspecto pode ser compreendido por você que o lerá de diversas formas. Não quero leia-o como uma crítica da minha parte, até porque o que aconteceu e relatarei logo abaixo, foi com o meu pleno consentimento. Então, se há alguém culpado, o principal culpado, sou eu mesmo. Mas enfim, vamos lá:

Não me vi valorizado primeiramente pelos próprios surdos. É entendimento corrente entre os que têm ‘tempo de carreira’ neste segmento que os surdos tratam-nos como os cegos tratam suas bengalas. Até quando for necessário o uso das bengalas, estas (as bengalas) são consideradas úteis para os cegos. No dia em que parece um cão-guia, ou mesmo ela (bengala) começa a apresentar defeitos pelo tempo, é descartada por outra nova. Assim somos nós ouvintes que atuam em prol da comunidade surda, seja dentro do segmento eclesiástico, seja em nível social, educacional, político. E isto já se tornou até piada no meio deles. A partir disto, com o passar do tempo fui vendo que, com raríssimas exceções, os surdos só me procuravam quando lhes era necessário. A ingênua amizade recíproca deu lugar ao utilitarismo. E disto, estou fora, sejam as pessoas surdas ou ouvintes.

Outro aspecto onde não me vi valorizado foi no próprio contexto eclesiástico. Se fosse levado em consideração os aspectos como formação acadêmica na área, possibilidades financeiras e casos análogos - tais como congregações, adolescentes, juventude, música - o reconhecimento, sobretudo em aspectos financeiros, deveria ter existido. Aprender LIBRAS, se atualizar constantemente, dedicar-se ao longo processo de conhecimento de campo, trabalhar como um pastor específico para eles demandou-me tempo, custos, dedicação, etc. E se para outros casos – leia-se ministérios - na minha experiência, isto era levado em consideração, nada mais justo que isso se expandisse para o ministério com surdos e eu fosse contemplado. Nunca aconteceu e eu não iria pedir, aliás, como nunca pedi.

Entendo que reconhecimento vai além de se parabenizar nos finais dos cultos (e isso, que não custa nada, foi tão raro durante doze anos). Reconhecimento passa por valorização, por estimular, por investir em progredir e prosseguir neste caminho. Não encontrei na minha experiência esta valorização. E isto não é uma experiência somente minha. Percebo que muitas igrejas gostam de se mostrarem inclusivas, mas não valorizam financeiramente as pessoas que doam suas vidas em prol daquilo. Hoje, as igrejas que mantém belos ministérios com surdos foram as que aprenderam que pessoas que atuam com surdos abdicam de muitas coisas de suas vidas, e por isso, são dignas de seus salários. O Estado, que aprendeu com a igreja a incluir, já percebeu isto e sabe valorizar minhas qualificações na área, tanto o é que hoje meu contato com surdos é meramente profissional, na seara da Administração Pública!

Portanto, sendo que eu consenti que isto me envolvesse, coube somente a mim essa decisão de parar. Não culpo a ninguém por isto, apenas a mim mesmo. Ficou a lição de que devo valorizar quem se dedica a viver em prol das coisas religiosas, porque além dos temores típicos de sua fé, estas abdicam constantemente de outras fontes de recursos de sobrevivência, e só por isso, já fazem jus ao reconhecimento financeiro para sobreviverem.


4. PORQUE AFETOU MINHA SAUDE EMOCIONAL E MINHA FÉ:

Esta talvez seja a razão que mais me afetou, levando-me a esta decisão. Deixar de ser chamado pelo nome próprio para ser reconhecido como o ‘rapaz dos surdos’, ‘o intérprete dos surdos’, afeta qualquer estrutura emocional. Chegou ao ponto onde estava me fazia mal. Não me sentia mais feliz. Ver que minha vida eclesiástica é sinônima de surdez é horrível. Saber que não pude entrar na minha igreja e participar de um culto como alguém normal por 12 anos estava me deixando angustiado. Minha estrutura psicológica estava pedindo para parar. Meu corpo, robótico que se tornou, idem.

O pior foi quando esse cansaço emocional começou a afetar minha fé, fragilizando-a. Comecei a colocar em cheque tudo que aprendi a respeito de Deus. Indaguei: poderia Ele deixar-me chegar neste ponto se o que mais desejei era somente serví-lo? Será que Deus usaria da minha humilhação (porque em alguns momentos foi isso que vivi) para alcançar os objetivos tidos ‘cristãos’ pelos quais eu lutava? Seria Deus um Deus injusto, que não valoriza a dignidade humana, a começar pela minha? Precisava mesmo eu passar todo esse martírio para serví-lo, para fazê-lo conhecido e aceito no meio deste estrato social?

A primeira razão exposta no inicio desta postagem me fez cessar esses questionamentos de fé, essa crise. Será que Deus em algum momento me pediu para fazer isto? A partir desta pergunta que fiz a mim mesmo, senti como se tivesse tirado um fardo das costas, e Deus do paredão em que o tinha colocado. Minha fé hoje sofre os efeitos disto, a partir do momento em que tenho procurado me manter mais pela racionalidade da fé, e partir disto, determinadas atitudes e comportamentos eclesiásticos me faz perguntar: Deus pediu realmente isto para esse povo? Será que Ele está nisto mesmo?



Enfim, é claro que há outras justificativas para eu ter parado. Algumas que não publicaria porque só interessam a mim e a Deus. Ele as conhece e sabe que, independentemente de qualquer coisa que aconteceu ou venha a acontecer, eu o amo. Eu sei, que como pecador que sou, sou carente de sua graça e de seu amor constante sobre mim. E que essa graça me basta e é tudo o que necessito.

A vida continuará. Não sei quais as próximas páginas que serão escritas, nem se em seus conteúdos haverá a presença dos surdos ou da língua de sinais, numa visão eclesiástica. Provavelmente, de forma ou outra, continuarão presentes, pelo menos no aspecto acadêmico (ensino e aprendizado lingüístico) e sócio-jurídico. Só sei que nas páginas que hoje escrevo, esta decisão está sendo marcada, porque me faz bem, porque me é necessário tomá-la.

Valeu-me a pena essa experiência religiosa? Lógico! Viveria tudo de novo? Acho que não, mas os aprendizados estarão para sempre na minha existência.

Espero ter explicado e encerrado o assunto, bem como as inconvenientes cobranças! Página virada!