quinta-feira, 29 de julho de 2010

CIDADANIA, DIREITOS HUMANOS E HOMOSSEXUALIDADE: PERCEPÇÕES BRASILEIRAS



A Secretaria de Direitos Humanos – SDH, vinculada à Presidência da República publicou neste ano de 2010 a obra “DIREITOS HUMANOS: Percepções da Opinião Pública – Análise de Pesquisa Nacional”, sob a organização de Gustavo Venturi (BRASIL), com o objetivo de estudar a percepção da população a respeito da cultura dos direitos do país, sobretudo em relação às reivindicações de segmentos sociais que se encontram em desigualdade estrutural, tais como mulheres, negros, pessoas com deficiência, índios, idosos, crianças e homossexuais.

Nas páginas 115 a 130, sob a batuta do antropólogo Osvaldo Fernandez, são apresentados os dados relativos à opinião pública quanto aos direitos das minorias sexuais, o papel do Estado em relação à sexualidade e os Direitos Humanos, a percepção da população sobre Cidadania, Direitos e Homossexualidade, a discriminação e violência estrutural contra Homossexuais, o reconhecimento do Homossexual como ator político ou da expressão desta minoria nos espaços públicos, a legalização da união conjugal e adoção de filhos por casais homossexuais,

Apesar do artigo não apresentar a quantidade de pessoas entrevistadas, tais dados percentuais são reveladores e apresentam mudanças nas perspectivas sociais em relação à Cidadania e Direitos Humanos e ao segmento LGBT no território brasileiro. Veja:

O que é Cidadania?

48% fazem referências universais, como:
a) 14% - ter direitos
b) 9% - respeito ao ser humano
c) 8% - direito a igualdade (pessoas com nível médio e superior de educação).

O que é Direitos Humanos?

58% dos entrevistados fizeram associação aos direitos individuais ou civis, como:
a) 17% - direitos iguais para todos
b) 11% - respeito aos direitos que temos
c) 7% - respeito aos direitos dos outros
d) 4% - ser respeitado pelos outros
e) 3% - viver ou sobreviver com dignidade

Premissa: “Os direitos humanos deveriam ser só para pessoas direitas”

a) 25% - concordaram totalmente
b) 9 % - concordaram parcialmente
c) 51 % - discordaram totalmente
d) 11% - discordaram parcialmente

A pesquisa conclui que ainda há um número significativo resistente aos direitos humanos e de cidadania, bem como conceitos gerais de igualdade social.

Quanto à relação direta de dependência entre decência e homossexualidade, 57% concordaram.
Já a análise de homossexualidade como doença, que precisa ser tratada:
a) 27% concordaram totalmente
b) 9 % concordaram parcialmente
c) 48% discordaram totalmente
d) 7% discordaram em partes.

Ao utilizar a frase de senso comum: “Mulher que vira lésbica é porque não conheceu homem de verdade”, o resultado foi o seguinte:
a) 58% discordaram da afirmação
b) 16% concordaram totalmente
c) 6 % concordaram parcialmente.

Sobre igualdade entre homossexuais e heterossexuais:
74% entendem que se trata de um direito humano (a maioria na faixa de 14 a 34 anos)
23% consideram válida em parte ou mesmo que tal igualdade não seja um direito humano. (idade superior a 60 anos).

Sobre a aceitação de minorias pela sociedade com seus direitos total ou parcialmente respeitados:
a) 75% mulheres
b) 68% negros
c) 67% pessoas com deficiência
d) 63% idosos
e) 60% índios
f) 58% adolescentes infratores
g) 52% presidiários
h) 46% LGB – Lésbicas, Gays e Bissexuais
i) 42% Travestis e transexuais

Sobre a permissão para casais do mesmo sexo adotar filhos:
a) 48% são a favor.
b) 36% são contrários
c) 13% nem contra nem a favor

Sobre a legalização da união conjugal entre pessoas do mesmo sexo:
a) 42% são a favor.
b) 38% são contrários
c) 17% nem contra nem a favor

Segundo o artigo, o estudo da percepção da população sobre a cultura de direitos para homossexuais no Brasil revela a existência da violência homofóbica, aponta para o estigma e a desigualdade estrutural desse sujeito e denuncia a discriminação e a violação de direitos através da prática do extermínio.

Basea-se em Scott (1994) com a idéia de “paradoxo entre igualdade e diferença”, onde estes não são termos opostos, mas interdependentes. Nesse sentido, a igualdade não elimina a diferença, e mais, a diferença não impede a igualdade. A existência de diferenças múltiplas, que não se excluem, mas se complementam, fortalece a democracia.

O enfrentamento do dilema do reconhecimento da diferença existente na múltipla diversidade de segmentos sociais, denuncia, dessa forma, a existência de uma desigualdade estrutural, onde toda essa gama de diversidade não vê seu reconhecimento social – e, portanto, jurídico, com o amparo de políticas estatais de defesa – em razão do fundamento enraizado culturalmente da equalização abstrata e universal do individuo numa maioria.

O dispositivo da sexualidade, com as novas práticas discursivas e mecanismos disciplinadores do corpo – me retoma a Foucault – constitui novos discursos sobre a sexualidade e a produção de novas identidades sociossexuais, novos sujeitos. Esse reconhecimento – de direito para o exercício da sexualidade baseada somente no prazer - não ocorrera ainda nem a âmbito internacional.

Segundo Fernandez (2010, pag. 118) in Mattar (2007), “se por um lado, o exercício dos direitos sexuais está no âmbito da privacidade e da liberdade sexual relativa à forma como se obtém prazer, por outro, é necessária a proteção estatal para que essa liberdade possa ser exercida plenamente, sem discriminação, coerção ou violência".

O autor ainda trabalha a tipificação criminal do preconceito sexual. Segundo o mesmo, o crime categorizado como preconceito sexual pode englobar os motivos e as razoes para a escolha da vitima, tanto para a realização de um crime simbólico, quanto de um crime instrumental. Nesse sentido, se a análise do crime é realizada em razão da escolha da vítima, no caso homossexual, tal crime seria classificado como “simbólico”, em outras palavras, “homofóbico”.

Agora se o crime é analisado sob a perspectiva de crime instrumental, a análise da existência de simbolização não acha espaço, pois por ele é analisado a forma em que se deu a violência, o que no caso de crimes contra homossexuais, quase sempre são classificados como latrocínios – roubo seguido de morte.

Segundo o autor, a prática estatal dos órgãos de segurança pública em analisar crimes cujas vitimas são homossexuais quase sempre como crimes instrumentais – até porque não há a tipificação específica de crime homofóbico – faz com que os “crimes de ódio”, ou seja, em razão da pessoa, não sejam registrados e, portanto, políticas públicas de reconhecimento ao direito à vida destas vítimas não são implantadas e nem os direitos efetivados.

Fernandez conclui que “no diálogo entre a maioria e as minorias (sexuais) é que a democracia avança, equacionando o paradoxo da igualdade social e das diferenças, do respeito à diversidade e aos valores democráticos, promovendo a cidadania e o reconhecimento dos homossexuais ou LGBT como sujeitos políticos que demandam por direitos, políticas afirmativas e proteção social – tais como as mulheres, negros, portadores de necessidades especiais, índios e crianças são sujeitos reconhecidos pelo Estado Brasileiro” (2010, p.130).

BIBLIOGRAFIA:

. FERNANDEZ, Osvaldo. Homossexuais, cidadania e direitos humanos no Brasil. In: Direitos Humanos: percepções da opinião pública: análise de pesquisa nacional / organização Gustavo Venturi. - Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, Presidência da República. 2010.

. MATTAR, Laura Davis. Desafios e importância do reconhecimento jurídico dos direitos sexuais frente aos direitos reprodutivos. Artigo. 2007.

. SCOTT, Joan W. Preface a gender and politics of history. Cadernos Pagu. n° 3, Campinas, SP, 1994.

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

NOVAES, Edmarcius Carvalho. "Cidadania, Direitos Humanos e Homossexualidade". Disponível em http://www.edmarciuscarvalho.blogspot.com/  em 29 de julho de 2010.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

QUEM É O OUTRO? RECONHECENDO O SER DIFERENTE



“Sabemos muito bem que as espécies se aproximam da extinção quando se engajam irreversivelmente em direções inflexíveis e assumem formas rígidas”.

Frase de Georges Canguilhem, médico e filósofo, em 1943 em seu texto “O normal e o patológico”. O autor, embora de forma imediata analisasse noções de saúde e doença, de forma mediata tratava da diversidade e das interferências que se (re)produzem no meio social.

É comum ouvir frases: “o mundo está de cabeça para baixo”, “o fim do mundo está próximo”, de pessoas que apresentam certa intolerância para alguns tipos de diversidade humana: negros no poder – nesse caso, fica no campo da idéia, afinal pronunciar isto é racismo, legalmente proibido –, homossexuais com suas demonstrações de afeto, crianças e adolescentes envolvidas no tráfico, dentre outras circunstancias sociais.

Por outro lado, há também uma necessidade atual de se mostrar moderno, e ser moderno em muitos momentos em relações sociais, é aceitar o diferente, seja o cego que pode andar sozinho, o surdo comunicando em sinais e o ouvinte, aos berros, tentando demonstrar entender sua forma de comunicação.

Na verdade, a tolerância ao diferente se dá de forma dissimulada. É fácil tolerar – e, portanto, demonstrar socialmente esse ato – o diferente, desde que este diferente não ameace minhas certezas, meus valores, meus gostos, meus conceitos e meu estilo de viver.

Entretanto, coadunando com o entendimento do referido filosófico acima citado, o meio ambiente capaz de garantir a sobrevivência do ser humano é necessariamente a cultura. Assim, o “monstrengo” diferente, que num primeiro momento encontra-se em situação de intolerância, de inadaptação às ditames da normalidade, pode ser considerado vital para a continuidade do ser humano, em detrimento da tão querida e reivindicada – mesmo que somente no campo das idéias – uniformização da sociedade com seres somente que se enquadram no ideal de normalidade.

Canguilhem afirma que “a atividade humana tem como efeito imediato alterar constantemente o meio humano”. Ora, para se alterar o meio humano se faz necessário reconhecer o valor do desvio, das mutações, do diferente, da exceção à regra, para a sobrevivência do grupo.

O medo da falta de regras, da falta da norma encontrados (em) por alguns, uma vez que aos poucos, a sociedade tem se mostrado aberta a mudanças, não faz sentido nesta perspectiva.

Dar valor ao desvio, reconhecer as mutações, as diferenças é necessário para a sobrevivência do grupo. Sem o desvio, sem a mutação, o normal não terá padrões de normalidade para se considerar como normal.

Como afirmar que ser branco é o normal se não existir o negro, o loiro, o mestiço? É possível considerar a heterossexualidade normal se não houvesse a diversidade sexual? O andante normal se não houvesse o cadeirante? Ressalto que não considero como normal somente o branco, o hétero e o andante.

A modernidade, tradição que se estende desde o século XVII com o ciclo do capitalismo, baseia-se em princípios republicanos, reconhece a laicidade, defende a democracia, os direitos humanos, e interessa-se por tudo o que a desafia, pelo novo, pelo diferente.

De caráter progressista e inovador, tendo como um de seus pilares os direitos humanos, a modernidade necessita garantir o respeito pleno e radical a todos os direitos, de todos, sem exceções, o que não significa desmoralizar os valores, as crenças tradicionais.

O que se procura é garantir a existência de espaço para a diversidade. Incluir as minorias passa por, respeitando valores e conceitos internos, dar espaço para a convivência social do autista, do cadeirante, mas também do homossexual, da criança e do adolescente que vivem no “reino da necessidade” como pensa Hannah Arendt, envolvidos em bolsões de pobrezas e as malezas que estes territórios trazem, do islâmico, do ateu, e tantos outros ‘diferentes’.

“Uma sociedade de direitos e de cidadania deve se pautar por princípios radicalmente opostos às inclinações afetivas, sejam das maiorias ou das minorias. É a impessoalidade dos vínculos e a suspensão do julgamento baseado nos afetos que garante direitos iguais para todos os cidadãos”. (Maria Rita Kehl).

Tolerar os desviantes da norma – biológica, psicológica ou moral/cultural – não significa elogiar a diferença, pelo contrario, é sim permitir a continuidade da existência da normalidade, uma vez que sem o diferente não haverá o normal.

Tags: direitos humanos, diversidade, diferenças, valores sociais, modernidade.
BIBLIOGRAFIA:
CANGUILHEM, Georges. La connaissance de la vie. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin. 2009.
KEHL, Maria Rita. Direitos Humanos: a melhor tradição da modernidade. In: Direitos Humanos: percepções da opiniao pública: análise de pesquisa nacional / organização Gustavo Venturi. - Brasilia: Secretaria de Direitos Humanos, Presidencia da República. 2010.