terça-feira, 31 de maio de 2011

PARTE 06 - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES FINAIS - A COISIFICAÇÃO DO OUTRO


Em continuidade a nossa série sobre as concepções acerca do conteúdo e dos significados do conceito de Dignidade da Pessoa Humana, numa perspectiva jurídico-filosófica, baseada na obra “Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional” (SARLET, 2009, Livraria do Advogado Editora) esta sexta e última parte examinará a presente questão pela perspectiva da coisificação do homem.

É certo que alcançar uma definição precisa do âmbito de proteção e de incidência do conceito de Dignidade da Pessoa Humana não parece ser possível. Não obstante, a busca pela compreensão de seu conteúdo e dos significados acabará alcançando sentido e operacionalidade apenas em face do caso concreto. Tal realidade não é exclusiva de tal princípio, ou seja, ocorre de modo geral com os princípios e direitos fundamentais.

Além dos aspectos já apresentados acerca da temática, a busca por uma definição da temática, de forma mais aberta, porém minimamente objetiva, visando sua concretização nos casos concretos, se faz mister em face da exigência de certo grau de segurança e estabilidade jurídica necessária, assim como para que se evite que a dignidade signifique justamente o contrário do que se deva ser, quando de sua concretização.

DURIG (1956) apresenta a fórmula do homem-objeto ao afirmar que a Dignidade da Pessoa Humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, ou seja, fosse descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos.

SARLET (2009) contempla tal possibilidade da formula do homem-objeto, no direito brasileiro, como enunciado de que tal condição é justamente a negativa da dignidade, quando a Constituição da República, em seu art. 5°, inciso III, estabelece de forma enfática que ‘ninguém será submetido à tortura e a tratamento desumano ou degradante’.

SACHS (2000) ao analisar a formula de coisificação do homem afirma que a definição da dignidade considera seu âmbito de proteção, sendo uma opção de análise, na perspectiva de determinar o âmbito de tal proteção somente a partir das violações da Dignidade nos casos concretos.

Tal perspectiva de análise é largamente acolhida e adotada pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, uma vez que não se define previamente o que deve ser protegido, mas permite a verificação, à luz das circunstancias do caso concreto, da existência de uma efetiva violação da Dignidade da Pessoa Humana, fornecendo, ao menos, um caminho a ser trilhado, de tal sorte que, ao longo do tempo, doutrina e jurisprudência se encarregam de identificar uma série de posições que integram a noção da dignidade da pessoa humana e que, portanto, reclamam proteção pela ordem jurídica.

Nesse sentido, a Dignidade da Pessoa Humana estaria vinculada ao valor social e pretensão ao respeito do ser humano, não podendo ser reduzido à condição de objeto do Estado, nem mesmo submetido a tratamento que comprometa sua qualidade de sujeito.

Tal compreensão não afasta, entretanto, o entendimento de que a formula do homem-objeto pode ser esvaziada quando, as pessoas, sejam na vida privada ou na esfera pública, constantemente se colocam a si próprias na condição de objeto da influência e ações alheias, sem que com isso se esteja colocando em duvida suas condições de pessoas. Agrega-se a isso o fator de que esta simples formula é insuficiente para apreender todas as violações e assegurar, por si só, a proteção eficiente da Dignidade da Pessoa Humana.

SARLET (2009, p. 34-35) conclui que, em ultima análise, “onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças”.

MORAES (2003) em vistas à concretização do substrato material da Dignidade da Pessoa Humana aponta quatro princípios jurídicos fundamentais (vinculados a um conjunto de direitos fundamentais) que corroboram para tal concretização, a saber:

a) da igualdade: que veda toda e qualquer discriminação arbitrária fundada nas qualidades da pessoa;

b) da liberdade: que assegura a autonomia ética, e, portanto, a capacidade para a liberdade pessoal;

c) da integridade física e moral: inclui a garantia de um conjunto de prestações materiais que asseguram uma vida com dignidade;

d) da solidariedade: a garantia e promoção da coexistência humana, em suas diversas manifestações.

Destarte, infere-se que para ordem jurídico-constitucional a concepção do homem-objeto e suas conseqüências constituem justamente a antítese do conteúdo e significados da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que tal instrumentalização do homem restringe o âmbito de proteção de sua dignidade, razão pela qual sua concretização deve dar-se por meio de outros princípios e direitos fundamentais.

DWORKIN (1998), baseado na doutrina de Kant, relembra que o ser humano não poderá jamais ser tratado como objeto, isto é, como mero instrumento para a realização dos fins alheios, destacando, todavia, que tal postulado não exige que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim, que as pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a importância distintiva de suas próprias vidas.

KANT (1980) refere expressamente que o homem constitui um fim em si mesmo e não pode servir “simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.

Sabe-se, de acordo com NEUMANN (1998), que o desempenho das funções sociais em geral encontra-se vinculado à uma recíproca sujeição, de tal sorte que a Dignidade da Pessoa Humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em principio proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar a outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa a ser o objeto da conduta, ou seja, a intenção de instrumentar, de coisificar o outro.


CONCLUSÃO:


Considerando a publicação desta série baseada no artigo “As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível” contido no livro “Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional” (2009, Livraria do Advogado), concluímos apresentando uma proposta do conceito de Dignidade da Pessoa Humana elaborada pelo autor de tal artigo, a saber, Doutor em Direito e professor Ingo Worgang Sarlet.

A Dignidade da Pessoa Humana, segundo SARLET (2009) é “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”

O autor utiliza, como critério aferidor de vida saudável, os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde, quando se refere a um completo bem-estar físico, mental e social, reconhecido no âmbito da comunidade internacional.


BIBLIOGRAFIA:


DURING, Günter. Der Grundsatz der Menschenwurde durch allgemeine Programmgrundsetze, Munchen: Reinhard Fischer Verlag, 1999.

DWORKIN, Ronald. El Domínio de la Vida. Uma Discusión acerca del Aborto,la Eutanásia y la Liberdad Individual, Barcelona: Ariel, 1998.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. in: Os Pensadores – Kant (II), Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 103-162.

MORAES, Maria Celina Bodin de. O Conceito de Dignidade Humana: Substrato Axiológico e Conteúdo Normativo. in: SARLET, Ingo, Wolfgang (Org.). Constituiççao, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 105-148.

NEUMANN, Ulfried. Die Tyrannei der Wirde, in: Archiv fur Rechts-und Sozialphilosophie (ARSP), v. 84, 1998, p. 153-166.

SACHS, Michael. Verfassungrecht II – Grundrechte, Berlin-Heidelberg - New York: Springer-Verlag, 2000.

SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível.In: Dimensões da Dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. pags. 15 a 43.


COMO CITAR ESTE ARTIGO:


NOVAES, Edmarcius Carvalho. PARTE CONSIDERAÇÕES FINAIS - A COISIFICAÇÃO DO OUTRO. Disponível em: http://edmarciuscarvalho.blogspot.com/2011/05/parte-06-dignidade-da-pessoa-humana.html em 31 de maio de 2011.

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